Lorena Salamanca //FCSH - Universidade Nova de Lisboa | 2020
Parte 1: Introdução
Em 2019, diferentes partes do mundo celebraram os 250 anos do aniversário de nascimento do naturalista alemão Alexander Von Humboldt (1769 - 1885); em particular, um ano temático intitulado Humboldt y las Américas teve lugar em países como a Venezuela, Cuba, Colômbia, México e os Estados Unidos da América. O enfoque nestes territórios está relacionado com a primeira expedição científica realizada por este naturalista fora da Europa em direcção ao Império Espanhol Americano durante os anos de 1799 e 1804, e da qual recolheu aproximadamente 100.000 objectos que se encontram actualmente em museus, arquivos e jardins botânicos de diferentes países do continente europeu. Está também relacionada com a publicação dos trinta e quatro volumes que compõem a edição francesa Voyage aux régions équinoxiales du Nouveau Continent —Viagem às regiões Equatoriais do Novo Continente— feita por Humboldt entre 1805 e 1839, onde classificou, ordenou e escreveu as suas viagens pela natureza e outras realidades humanas dos "trópicos".
Com programas de investigação e educação, conferências, exposições e curadorias, os museus de arte, ciência, etnografia e antropologia abriram as suas portas a homenagens, bem como a desarticulações globais sobre Humboldt: vale a pena notar que "o interesse académico e de investigação pelo explorador nos últimos vinte anos tem vindo a aumentar", particularmente na Alemanha, sublinha Maria-Paz López sobre certas declarações da historiadora Bénédicte Savoy (2019). Apesar disso, parece não ter sido proporcional em todas as áreas do conhecimento que este viajante influenciou. Para além das suas próprias contribuições, por outro lado, a emergência desta figura no campo da educação e cultura deve-se muito mais às redes e à gestão cultural de espaços como o Goethe Institut sediado em diferentes países do mundo ou o recentemente inaugurado "pós-museu" Humboldt Forum (2019) em Berlim; Na nossa opinião, estas tentativas de intercâmbio discursivo numa esfera transnacional criam um precedente importante entre o passado habitado por Humboldt, a sua figura como naturalista global, e o nosso presente no que diz respeito à cultura e à ciência, sendo estes dois últimos entrelaçados por visões que visam abranger o mundo em toda a sua amplitude e políticas culturais claramente atravessadas por uma busca da identidade nacional alemã.
As formas de projectar discursos que se propõem abraçar o globo terrestre num tipo de globalismo que deambula entre o passado e o presente, em suma, está ligado a um desenvolvimento contínuo dos processos e eventos da globalização compreendidos a partir da amplitude dos seus significados; Jonathan Harris faz um panorama para o termo que é útil citar para depois aprofundar no interesse do artista equatoriano Fabiano Kueva em propor um arquivo local e menor a toda uma comunidade. O desdobramento de Harris compreende uma série de camadas para diferentes momentos de agrupamentos e uniões para além das fronteiras, assim observamos que: “o termo ‘globalização’ - um produto de meados do século XX - é em parte sinónimo de um termo mais antigo para uma prática muito mais antiga, que é o termo ‘imperialismo’: o domínio planeado e sistemático de um grupo ou povo e dos seus recursos por outro” (Harris, 2016, p. 16). Harris explica então sobre os seus efeitos ligados ao projecto imperialista que “as alianças regionais, primeiro das cidades-estado e depois das nações, têm representado durante muitos séculos, estratégias para alterar a situação dos povos, lugares e áreas vistas como objectos de influência, manipulação, controlo e exploração” (2016, p. 16). Por outro lado, este termo “é também sinónimo do processo de ‘internacionalização’, que remonta ao século XIX, (...) o nascimento de um ideal, de um quadro de ideias e princípios, assim como de um movimento social constituído com o objectivo de unir pacificamente nações soberanas dentro de estruturas legais e morais acordadas” (Harris, 2016, p. 17). Num lugar cada vez mais dominante dentro destas camadas estão os laços entre a Capital e o Estado, embora evidentes desde 1945 em acções militares e estratégias políticas, por exemplo, na divisão da Alemanha e Berlim, vão consolidar-se muito mais na criação de redes empresariais e tecnológicas e nas comunicações culturais: “Vale a pena mencionar outro aspecto da definição e análise do termo. Uma utilização comum da ‘globalização’ ameaça reduzir o mundo e os seus povos a um conjunto de recursos conhecidos, já explorados ou exploráveis (...) O globo, portanto, é uma entidade quantificável que os cientistas e planejadores podem descrever e representar de várias formas; pode ser utilizado ou ‘gerido’ por engenheiros e trabalhadores. Mas, em contraste com o seu sentido ‘produtivista’, é também o espaço ‘segregado’ ou habitado onde formas de vida e ecossistemas - um organismo e o lugar limitado do mundo humano - coexistem” (Harris, 2016, p. 21).
A construção a partir de diferentes áreas disciplinares e raio de acção dos discursos em torno de uma personagem como Humboldt revive debates intensos dos quais os fundamentos dos espaços museológicos como o Fórum ou o trabalho de artistas em diferentes partes do planeta não escapam, nomeadamente, nesta era “pós-colonial” como Hans Belting enquadra a nossa actualidade no texto Arte Híbrida? Um olhar por trás das cenas globais(2001). Embora possa parecer que nos afasta do tema central deste texto, é significativo compreender de que se trata esta época, acontecimentos como a demolição das estátuas de conquistadores, presidentes, escravos, missionários religiosos, entre outros, em diferentes latitudes do globo: um fenómeno que pudemos testemunhar pessoalmente, bem como praticamente em personagens que representam hoje, para certos sectores da sociedade, os vilões de uma história hegemónica.
A desmontagem destas esculturas, com um profundo significado simbólico, surge como uma oposição à invisibilidade imposta pelas acções e discursos “colonialistas”; de certa forma, brincam com a mesma fúria iconoclasta (Traverso, 2020) com que as estratégias coloniais conseguiram há vários séculos instituir uma epistemologia racionalista, positivista, católica e canónica. É igualmente significativo recordar casos como a descoberta do monólito asteca Coatlicue no Zócalo da Cidade do México —ou a Plaza Mayor, a zona central do antigo Tenochtitlan—, “num momento chave da política científica do regime Bourbon como resultado do apoio que deu à preservação dos restos da antiguidade mexicana, bem como do impulso dado ao estudo da botânica e das belas artes”. (Morales, 2019, p. 10). Em 1790, após obras de remodelação realizadas nesta parte da cidade, esta "deusa monstruosa" foi descoberta, e semanas mais tarde foi deslocada e enterrada de novo porque aos olhos do vice-rei ela podia provocar a ressurreição das idolatrias e um choque com o cânone estético neoclássico por causa do seu estilo bizarro. Mais tarde, em 1803, através de um pedido expresso de Humboldt às autoridades do México —ou ao Vice-Reino da Nova Espanha— a estátua foi exumada e uma vez realizado o desejo de Humboldt, esta deusa regressou às profundezas da terra. Em troca deste tipo de eventos, parece que o mesmo veneno que nos foi dado é necessário para combater a invisibilidade, quer seja através de demolição ou ocultação repetida. Uma das perspectivas de pós-colonialidade é dada na reflexão de vontades colectivas para posicionar outras histórias através da eliminação da imagem e da sua materialidade, quer através de uma reencenação da história através de múltiplos testemunhos, quer através da ficção, quer através da supressão de símbolos.
Figura 1: “Sacerdotisa Asteca” em Researches concerning the institutions and monuments of the ancient inhabitants of America (translation of Vues des cordillères et monuments des peuples indigènes de l’Amérique) do explorador Alexander von Humboldt.
Figura 2: Vista exterior da Humboldt-Universitat zu Berlin onde podemos apreciar a estátua do cientista e explorador alemão, Alexander von Humboldt.
Figura 3: Derrube em diferentes latitudes das estátuas dos conquistadores, presidentes, esclavagistas, missionários religiosos, entre outros.
Figura 4: Berliner Schloss - Kaiserliches Schloss (Castillo de Berlim ou Imperial) ou o futuro Humboldt Forum, construído de 2008 até 2020.
A irrupção das contranarrativas na história como um problema fundamental dentro da tensão contemporânea entre colonialidade e pós-colonialidade remete-nos para outras questões que poderíamos sintetizar em opostos indissolúveis, tais como subjectividade/alteridade, e outros pares geopolíticos subsequentes, tais como centro/periferia ou primeiro mundo/terceiro mundo que estão a ser reavaliados sem perderem necessariamente a sua plena vigência. Nessa medida, como já mencionámos, existem ligações entre o passado de Humboldt e o nosso presente. Quais são as indicações desta regulação social, cultural e política dos discursos e representações dadas por estas dicotomias entre o século XVIII e o presente? O facto de o trabalho de Fabiano Kueva com o Arquivo Alexander von Humboldt ser transversal a colecções de artefactos, objectos e documentos etnográficos —e de nos manter continuamente numa oscilação entre passado e presente —revive paradigmas modernos como o modelo de “salvação” e a determinação com que os artefactos étnicos estão fora do tempo histórico —disparidade com invenções filosóficas, política, tecnológica—, ou seja, refere-se a uma legitimação da “representação dos povos geograficamente mais remotos enquanto pertencendo a um momento anterior na progressão da história, tratando-se de salvar a sua especificidade cultural na medida em que esta é entendida como representando o passado auténtico da cultura occidental” [Carvalho, 2007, p. 18 ; Dominguez, 1998, p. 136]. Por outras palavras, e tal como Virginia Dominguez en Of The Other Peoples: Beyond the “Salvage” Paradigm(1998) “existe uma natureza hierárquica, subjacente à percepção da alteridade, que convoca inevitavelmente prácticas de representação apropriativa(...) a preponderância do modelo da ‘salvação’, na representação da alteridade, deve-se precisamente a este paradigma da representação da história na cultura occidental,(...) baseada numa concepção do tempo histórico enquanto irrepetível, pelo que é dada uma tarefa fundamental aos arquivos, museus e colecções: a de preservarem um passado 'autêntico'. É assim que o modelo da salvação se impõe através da representação apropriativa das culturas de diferentes povos, que pela lógica linear do progresso, tendem a perder a sua especificidade cultural face ao impacto da modernização.”.
Gostaríamos de retomar o caso do Humboldt Forum —o museu mais caro da Europa atual, rondando já os 644 milhões de euros— para reflectir sobre a superação de dualismos como "alteridade/subjetividade" e o modelo de "salvação" já mencionado, mas agora falando a partir de uma transformação na concepção do tempo histórico. A contemporaneidade definida como um momento “vivificador” do passado sem história em termos modernos: um presente multiforme, multicultural e pós-étnico que torna possível a inserção de contranarrativas (Belting, 2015). A irrupção da condição contemporânea na lógica das instituições modernas, sejam museus ou arquivos, originou a problematização da sua própria interioridade “em termos de graus e movimentos dentro do mesmos conceito, ou melhor, em termos de diferenças, simultaneamente dentro e entre entidades”(Carvalho, 2007, 29 ; Minh-ha, 1998, 140), esta é uma das razões que defende a modificação do seu próprio nome, de museu para pós-museu. Mais uma vez, podemos perguntar-nos quais são os sinais desta regulação social, cultural e política dos discursos e representações dadas por estas dicotomias entre o século XVIII e a actualidade, mas agora de um ponto de vista retrospectivo.
O Forum é uma instituição que reorganiza discursos e temas numa estratégia geopolítica de argumentação e trabalho conceptual para a manutenção e validade universal da ideologia humboldtiana (Kueva, 2019). Embora a validade de uma ideologia torna este projecto controverso devido à insistência duma lógica fixa, em que os centros regulam os temas bem como os fenómenos, limitando a margem de acção “reversível”, existem outros pontos controversos quando a materialidade desta geopolítica é vista a contrapelo: o seu próprio património e a sua localização num mapa global. Não é por acaso que este pós-museu foi construído exactamente no terreno que outrora albergou o palácio dos reis do Império Prussiano, nem o desejo de reconstituir um estilo barroco imperial na sua fachada, uma vez que todos estes guinchos nada mais são do que formas dum reavivamento do centro do triunfo e do poder económico. Em relação ao património, este espaço é proposto para exibir várias das colecções arqueológicas e etnográficas de África, América, Ásia e Oceânia detidas pelo Estado alemão, entre estas várias da viagem americana de Humboldt juntamente com uma série de programas de arte contemporânea, dança, música, ciência, e em geral uma plataforma de apoio à diversidade. É inevitável um não se interrogue sobre as contradições que surgem entre o conteúdo e a fachada. Segundo Claudia Ervedosa na sua coluna para o jornal Público “a estratégia de usar o interior do edifício para atenuar a reconstrução histórica de um edifício de tradição autoritária não produziu os efeitos esperados. Muito pelo contrário, ela desaguou numa das mais acesas polémicas atuais, nomeadamente sobre a “amnésia colonial alemã”, conforme apelidou o historiador Jürgen Zimmerer, um dos seus mais acérrimos críticos. Intelectuais como ele criticaram que, sob a capa de um discurso de tolerância e abertura ao mundo, os responsáveis do Humboldt Forum estavam na verdade a praticar uma revival da história da Prússia e a lidar com as coleções etnológicas e antropológicas sem ter em conta o contexto colonial em que os objetos foram adquiridos.” (2020).
Parte 2: Arquivo Equatoriano “Alexander Von Humboldt” do artista Fabiano Kueva
Figura 5: Em relação ao título Voyage aux régions équinoxiales du Nouveau Continent —Viagem às regiões Equatoriais do Novo Continente— sobre a viagem feita por Humboldt entre 1805 e 1839 pela região Equatorial. Fabiano Kueva viaja do Equador para Berlim, ao contrário de Humboldt . No próximo quadro deste vídeo iremos vê-lo a visitar os jardins e o palácio do viajante alemão em Tegel. Vídeo: Ensayo Geopoético: Alexander von Humboldt. Fabiano Kueva (2019). 59:49 minutos. https://www.youtube.com/watch?v=ez8U3aeUH5E
Figura 6: Arquivo Alexander von Humboldt, Humboldt Forum, Berlim, Alemanha, 2019.
Vários gabinetes e instalações que estabelecem conexões internas e combinações aleatórias com o relato audiovisual intitulado Ensaio Geopoético sobre a Viagem de Humboldt (2011-2019)
Figura 7: Arquivo Alexander von Humboldt, Ex Teresa Arte Actual, Cidade do México, México, 2019.
Em 2011 o artista Fabiano Kueva (Quito - Equador, 1972) iniciou um projecto artístico bastante extenso sobre os vestígios de Alexander von Humboldt e as narrativas científicas/estéticas que o naturalista capturou, guardou e divulgou das suas viagens pelos reinos de Nova Granada e Nova Espanha —duas das colónias do Império Espanhol no século XVIII. Kueva, através de diferentes cruzamentos disciplinares, propõe outros discursos sobre o arquivo e a performatividade do viajante naturalista/artista através da performance e da desarquivação das representações da natureza, dos sujeitos, e da história que derivam do que foi dito por Humboldt. O horizonte final para este projecto é 2021.
Em 2019, o artista apresentou este arquivo em dois lados do globo, no museu Ex Teresa Arte Actual na Cidade do México e no já mencionado Humboldt Forum em Berlim. Embora o trabalho do artista ao longo de vários anos se concentre nas diferentes exposições destas outras narrativas e documentos em locais cruciais para compreender as viagens de Humboldt, é também importante sublinhar as suas deslocações como um "arquivo paralelo" que, por diferentes razões, acaba por chocar com os fragmentos da realidade, as representações e as instituições que contêm o insigne discurso Humboldtiano. Do mesmo modo, esse ano é um precedente porque dois tipos de narrativa “ficção”, a do viajante “naturalista” e a do viajante “artista”, convergem no mesmo plano geográfico, em condições contemporâneas e globalistas. No contexto do aniversário de Humboldt, o Arquivo Humboldt coincide com estas celebrações, mas como diz o artista, a sua participação não significa que haja uma concordância entre discursos e orientações; mesmo que assim seja, estar dentro do programa deste pós-museu deixa várias questões no ar, entre elas, como é que afectam aos interesses críticos deste arquivo “paralelo” os objectivos de uma instituição revivalista de um cânone sobre a “diferença”? De certa forma, no catálogo que acompanha este projecto, Fabiano Kueva responde-nos antecipadamente com aquilo a que chamou um final aberto: “em tempos de renascimento como política de esquecimento, este projecto recusou uma obra na linha da homenagem e da apologia. Contudo, todo o projecto artístico habita, irremediavelmente, o ciclo capital - poder - conhecimento que denuncia e interpela. Vivendo assim num paradoxo, muito semelhante ao do século XIX, sendo, apesar de tudo a sua acção: apenas uma peça, um tema de museu”. (Kueva, 2019, p. 51)
Figura 9: Friedrich Georg Weistch, Humboldt e Bonpland na llanura de Tapi, 1810, Berlim.
Figura 10: Fabiano Kueva, 2012, Chimborazo. Videostill: Mayra Estévez Trujillo. Colecção AAVH.
A travessia do Arquivo Alexander von Humboldt foi iniciada no Equador, território pelo qual Humboldt passou juntamente com o naturalista e botânico francês Aimé Bonpland; onde estas duas figuras viajaram de 1802 a 1803, para depois partir através do Oceano Pacífico para Acapulco, México: por outro lado, o artista Fabiano Kueva e uma mímica travestida criolla de Humboldt também pisaram esses mesmos lugares nesta última década. A reescrita de algumas coordenadas já transitadas permite a construção de um aparente paralelismo de movimentos, cenários e situações: é uma margem de manobra para o “arquivo paralelo” (figuras 9 e 10)
Figura 11: O Naturgemälde representou o Chimborazo, um vulcão no Equador que Humboldt tinha escalado. Nesta secção mostrou as plantas distribuídas de acordo com as suas altitudes.
Representações pictóricas e retratos, bem como notas em diários de viagem, descrições, taxonomias, catálogos sobre a paisagem e colecções de objectos de ordem diferente sobreviveram como prova da expedição do século XVIII: estes documentos textuais e visuais estão agora arquivados em diferentes locais do continente europeu, o que fragmentou e tornou invisível até a visão Humboldtiana. A precisão dos registos sobre a altitude dos pisos térmicos no Naturgemälde (Figura 11) ou o retrato dos viajantes com o vulcão do Chimborazo ao fundo —no Equador— (Figura 9 e 10) como demonstração de proeza humana revelam duas formas do espírito dos humanistas da época: o iluminado e o romântico. No primeiro, o viajante “procura novos horizontes para expandir a sua racionalidade para limites insuspeitos, sempre em busca de uma racionalidade universal e objectiva; enquanto no segundo, a sua viagem é empreendida em direcção à sua própria interioridade, em direcção ao escuro, caótico e desconhecido do qual não há imagem visual (...)” (Yegres, 2015). Como prova disso, nos anais da história é notado que “Humboldt levou quarenta e dois instrumentos científicos pela América Latina, mas também insistiu que devíamos compreender a natureza através da imaginação e dos sentimentos”. (Rebok, 2003).
As mitologias românticas derivadas desta ascensão ao Chimborazo foram actualizadas e desmistificadas, por exemplo, no que diz respeito às passagens descritas pelo próprio Humboldt nos seus diários de viagem, onde se assume ser o herói moderno de uma epopeia científica que atingiu um pico inatingível. As suas medições como pressupostos em relação às dimensões foram um desacerto, uma vez que o Chimborazo não era e não é o pico mais alto como ele acreditava e não é a montanha mais alta mesmo nos Andes. Nessa medida, afirmar que “nunca ninguém tinha subido tão alto, nem mesmo os primeiros aeronautas com os seus balões na Europa” (Gómez, 2017; Humboldt, 1837) evidencia as contradições na erudição do cientista, mas também a sublimidade heróica da alma humana. É conveniente salientar que estes desacertos foram múltiplos no que refere aos outros sejam indígenas ou índios, consolidando visões esquemáticas sobre o paraíso, o exótico, o inferior, ou seja, toda uma retórica civilizadora entre o iluminado e “o selvagem”, “o bárbaro” ou “o canibal”, que vai fundamentar a dicotomia “sujeito/alteridade” e geopolíticas como "centro/periferia" e que mais tarde foi estendida aos fundamentos de disciplinas como a antropologia. Assim, Margarida Carvalho sublinha que “a antropologia, no decurso do século XIX, será assumida como a ‘ciência do homem’, dedicada ao estudo da humanidade, através de um conhecimento autoconsciente, centrado na alteridade. Ao mesmo tempo, foram criados museus públicos e foi iniciado um processo de investigação e colecção de artefactos etnográficos. Uma historicidade de representação, marcada pela expansão do colonialismo europeu, pode assim ser assimilada por uma fé insuperável na ciência (...) e pelo poder do capitalismo ocidental que domina, no século XIX, a maior parte da política mundial” (Carvalho, 2007, 16).
Fabiano Kueva na sua proposta artística de um Arquivo apresenta-nos uma videoprojecção em grande escala do filme modular intitulado: Ensaio Geopoético sobre a Viagem de Humboldt (2011-2019) cujos fragmentos são: Viagem às regiões Equatoriais do Novo Continente; Subida ao vulcão Chimborazo e visita à “Mansión del Inca” em Cañar; Ensaio sobre a Geografia das Plantas; Vistas Pitorescas do Rio Magdalena; e O caderno perdido de Itália (Bourguet, 2008) (Anexo 1). Justapostos à videoprojecção estão vários gabinetes e instalações que estabelecem conexões internas e combinações aleatórias com o relato audiovisual. Assim, cartas, mapas, herbários, objectos encontrados, livros ou amostras geológicas (Anexo 2). Esta proposta, em primeira instância, parece estar alojada num "regime binário de todo museu: arquivo e representação, isto é, aquilo que permanece invisível e aquilo que é visível aos olhos do público". (Morales, 2019, p. 11). No entanto, a performatividade do arquivo, a performance e a ficção perturbam a estabilidade do referido binarismo ao interferirem com uma mutabilidade incessante e aleatória, e no caso do arquivo, com a separação da sua reciprocidade como um dispositivo de verdade, memória e fidelidade. As estratégias utilizadas pelo Kueva para criar estas interferências são materializadas num extenso inventário de elementos tais como: reproduções de documentos originais da expedição Humboldtiana, elementos ou objectos da cultura popular, objectos feitos à mão por comunidades indígenas, plantas autóctones que recolheu durante as suas viagens, livros de investigadores e curadores sobre a natureza no continente americano, entre outros que fora dos documentos e objectos das colecções europeias são "inautênticos". Do mesmo modo, a execução de uma performance por vezes como Humboldt e noutras como artista num turbilhão de aparições em diferentes partes do mundo, e o seu aparecimento como uma mímica do Humboldt em conferências, mesas de debates em relação ao tema.
Para Fabiano, o desarquivamento e a ficção são realmente importantes, tanto que uma das principais questões deste projecto “é possível desarquivar, fazer um arquivo crítico ou tornar um determinado arquivo "crítico" e tornar possível a sua utilização/viragem/quebramento em ficção?” procura o poder de interferência nestas duas estratégias. Voltamos a esta questão para expandir o arquivo, pois consideramos que o Arquivo Alexander von Humboldt é construído, em princípio, como um arquivo, já não dominado pela negatividade dialética “subjectividade/alteridade”, senão, com um lugar de consignação “diferente” que procura interferir com a geopolítica do centro/periferia: “Humboldt é produzido ao contrário, torna-se reversível e o sujeito anónimo das suas narrativas apropria-se da história do viajante para ‘protagonizá-lo’, para o descentralizar”. (Kueva, 2019, p. 33). A reversibilidade da narrativa está completamente correlacionada com a oscilação entre o local e o menor, e o global.
Nesta proposta artística, no exercício de desarquivar Humboldt, Kueva faz uma operação que transfere os elementos de um Arquivo a um Atlas: “Para compreendê-lo temos o procedimento que usa Georges Didi-Huberman para descrever o conceito que diferencía Atlas de Arquivo: “Enquanto que o Atlas é uma série de janelas para outras imagens (ou interfaces que não dependem da tecnologia, como no caso de Warburg)”,o arquivo não permite distinguir a natureza heterogénea das imagens uma vez que as situa como elementos equivalentes de uma mesma série.” (Didi-Huberman, 2011 ; Kueva, 2019, 36). A nosso ver, também existe uma transfiguração do Atlas à performance/performatividade porque é desde o corpo onde “se vinculam as coisas do mundo”(Didi-Huberman, 2011, 17). No vídeo, tal como noutras performances realizadas no âmbito das diferentes exposições do Arquivo, vemos um corpo-eixo que está a realizar um reenactment crítico de uma figura histórica justaposta à própria performance do artista: a Mímica pós-colonial, perto do que Achile Mbembe chama las potencias del travestimiento (Kueva, 2019, p. 16 ; Mbembe, 2016, p. 209) numa busca por reequacionar os modos de observação da natureza. Fabiano como “sujeito do discurso vive uma cisão radical, em si e contra si, devindo o objeto fantasmático e invertido do argumento(...) trata-se de um movimento de deslocação e descentramento que visa a produção de uma ‘verdade política’(...) ao invés de se tratar do dispositivo de nivelamento defendido pela ética de ‘tolerância’ que preconiza a projecção na posição do outro para melhor proceder ao seu confinamento inócuo(...) Ora, na justa medida em que esta verdade é produzida através de uma cisão fundamental, que não cessa de se repetir, ela não pode nunca assumir um carácter natural ou acabado, na medida em que esta ‘verdade’, que é também um princípio de acção, é indissolúvel do movimento de diferenciação que a possibilita.”(Carvalho, 2007, 33).
Finalmente, a invisibilidade como um desejo aparece em todo este texto ligado ao sentimento pós-colonial e a uma “fúria iconoclasta”. Quanto à memória e ao património, o impulso para certas verdades através da invisibilidade pode torná-las secundárias, enquanto a busca do seu desaparecimento total pode torná-las insubstituíveis. Noutras circunstâncias, a invisibilidade reaparece como uma particularidade dos arquivos dentro das “Instituições de Memória”; talvez o sentido do binarismo invisibilidade/visibilidade seja o de manter o estado das coisas em constante latência. No caso deste arquivo, diz Kueva: “O desafio é olhar o viajante científico para além da sua mitologia romântica e do seu estatuto autoral, apontando como estas relações entre capital, poder e conhecimento se tornam in/visíveis e permanecem no tempo. Para alterar o percurso original de Humboldt, formando uma colecção de imagens, textos e objectos de valor inestimável que, quando não são arquivados, questionam os atributos de verdade - memória - fidelidade que as instituições oficiais atribuem a si próprias. Um gesto menor mas constante que produz interferências” (Kueva, 2019, p. 41).
Anexo 1: Ensaio Geopoético sobre a Viagem de Humboldt (2011-2019)
Figura 12, 13 e 14:
Museumszentrum Berlin-Dahlem
Video: Excertos do Ensayo Geopoético: Alexander von Humboldt. Fabiano Kueva (2019). 59:49 minutos.
Anexo 2: Gabinetes e instalações que estabelecem conexões internas e combinações aleatórias com o relato audiovisual
Figura 15, 16 e 17:
Vídeo: Excertos do Wer ist Humboldt?
Humboldt Forum, 2019
https://www.youtube.com/watch?v=IGr-jleW12I&t=1s
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